segunda-feira, 14 de junho de 2010

Comprimento do Cumprimento


Ontem minha dona ouviu uma palestra e foi cumprimentar o palestrante. Seu aperto de mão foi frouxo, sem vida, os dedos se escorrendo pela palma sem ao menos pressionar. Ela tentou encaixar melhor, ir à frente e apertar com firmeza. A outra escapou rapidamente, como se não quisesse, evitasse o contato caloroso oferecido ali. Não sabia dar a patinha.

Um animal jamais faria isso. Cães em geral pressentem a chegada de outros com muita antecedência. Eu por exemplo identifico o barulho da moto do papai quando ele vira a esquina. Além de tudo percebo as rotinas de cada um da minha casa. Quando acordam, o que comem. Tudo. Até pelo “- Bom dia, cão”; eu sei como estão...

Devido as minhas dificuldades em entender os humanos estou estudando essa espécie com afinco. Primeiro os cumprimentos. “Bom dia”, pode ser também, “boa tarde”; em francês. Eles o estendem até mais tarde. O meu termina com as refeições. Sigo os donos e me recolho. “- Olá, tudo bem”, em mandarim é ni hao ma? Mas pode ser uma saudação genérica. Os orientais são mais concisos do que os ocidentais.

Nós, apenas fitamos. Olho no olho. Orelhas em pé significam atenção. Rabo para cima também. As quatro patas no chão demonstram sincera audição. Se a minha boquinha ficar mais fechada ainda e eu afastar minha cabeça, estou preocupada. Já vocês balançam a cachola pra lá e pra cá e não sabem se vão ou se ficam. A indecisão é uma grande característica de gente. Ou você já viu cão vacilar?

“Por favor” é algo que quase não vejo mais. O povo está ficando sem educação. A minha cara de “cão pidão” é tão clássica que nem irei descrever. Sempre consigo o que quero, pois sou honesta nas minhas solicitações. Aí minha cauda estará levantada e levemente abanada, sou curiosa, como toda fêmea o é. Reparem sempre no binômio cara-cauda. É tudo que precisa para entender um cachorro.

“Muito obrigado” é pior ainda. Ninguém agradece nada. Até em inglês essa expressão vem sendo abreviada. Thank you virou thanks, na NET ficou “TK”. Essa mania de fonemas escritos dá uma dificuldade danada para eu interpretar no meu “lap dog”. Canídeos são simples, abanou o rabo, está feliz, com a boca escancarada e até babando, por exemplo; na raça boxer.

Mas se ninguém diz “muito obrigado” eu fico chateada. Amuadinha mesmo, abaixo as orelhas e coloco o rabo entre as pernas. Sem medo, que é diferente. Medo é cauda parada. E o “com licença?”, esse inexiste! Quando por exemplo vão passar perto de mim, sem respeitar meu espaço. Em italiano -existem cães deste país que adoro como o cane corso, ou os mastins, especialmente os napolitanos- é prego , que pode ser empregado de várias maneiras, de acordo com o contexto no momento. Mas sempre de um jeito educado e polida. Se não tem nada, eu me transformo.

Aí meu rabo fica parado, levantado ou na horizontal. Os dentes, a gengiva começam a aparecer e eu rosno. Rosno porque tenho ódio de falsidade e má-educação. O povo fica falando que sou agressiva, mas é mentira. É que eu sinto o medo nas palavras, a insegurança nos gestos das pessoas. Aí avanço. E é uma loucura. Minha boca entorna, o latido fica grosso e a cauda – segundos antes do ataque – vai para baixo e fica durinha como uma aroeira.

Se você viu todos os meus dentes é porque vai levar uma mordida das boas. E eu sou fera nisso. Mordo bem, giro minha cabeça e saio rasgando o que for. Calças, botas, jornais e luvas. Se não tem proteção meus caninos penetram fundo na carne macia e mole dos humanos. Já repararam como o couro de vocês é fino e sem pelos? Uma delícia para abocanhar!

Minha sugestão é que vocês comecem a se cumprimentar iguais a nós. Cheirem o bumbum um dos outros... Desta maneira poderão saber o que comem e se são asseados. Gente de rabo sujo é o que não falta! E rabo preso também! Quem tem orgulho do que come e do que é, irá levantar a cauda reluzente, ofertando seus aromas primários até os terciários, como um vinho nobre que os entendidos tanto apreciam. Já os infelizes -de alimentação parca e acostumados à podreira- ocultarão suas partes pudendas, com vergonha de seus hábitos.

E jamais darão bom dia, pedirão um favor, agradecerão ou dirão licença. Humano grosso é também curto. Sem nenhuma noção do comprimento do cumprimento.

Úrsula Maff

5 comentários:

  1. Esse cão é esperto, aliás como todos o são,
    ligados eles sabem de tudo, e não é conto não, é a realidade.
    Abraços,
    Lu

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  2. Luzinha,

    Ainda estou desenvolvendo minhas qualidades literárias. Mas minhas orelhas estão em pé. Tento observar o mundo "humanal" e postar aqui o que vejo.

    Obrigado pelos elogios. E um grande beijo na sua maravilhosa Any, minha amiga.

    Auf, auf, lambidinhas,

    Úrsula Maff

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  3. úrsula,

    você é uma moça muito esperta! quando você fala fico com um pouquinho de vergonha pela minha raça...
    ainda bem que cheiro os meus filhos, até sei o que comeram na escola só pelo cheiro de suas bochechas, pescoço, roupas... mas reconheço que nós humanos somos muito cheios de "não me toques". bobagem nossa mesmo. achei muito interessante você descrever cada passo de suas reações, ficou um barato.

    o texto está muito bom e suas críticas são uma mordida e tanto!

    carinhos variados para você, menina.

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  4. Maravilhoso...pura verdade. Só mesmo quem tem sensibilidade conhece a pureza dessas lambidas.....

    Carinhosamente,

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  5. Betina,

    O nervo olfatório nos humanos é o único que tem, conexão direta com o cérebro. Não faz sinapses. Isso significa que a melhor memória é a olfativa.

    E que olfato está ligado a afeto. Parabéns por cheirar seus filhotinhos.

    Obrigado pelos elogios, meu "lap dog" está ficando cheiinho deles!

    Lambidinha, garota

    Úrsula Maff

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