domingo, 17 de outubro de 2010

Eu Quase Morri

Hoje já se passaram mais de dois meses em que fui submetida a uma histerectomia e ooforectomia. Retiraram meu útero e ovários. Doeu muito, fiquei sedada mais de um dia no pós-operatório, mas o pior foi o que eu senti. A surpresa, a angústia, o despreparo ao ver meu corpinho peludo estirado no meu ninho, sem poder fazer nada, foi duro.

Eu não imaginava que ficaria doente, sempre brinquei muito. Aquela secreção amarela, a febre, a prostração me jogaram no chão, nem no sofá da sala que eu gosto tanto, conseguia ficar. Meus donos perceberam de imediato, mas eu acredito que demoraram a valorizar os sintomas e o meu sofrimento. Humanos tendem a minimizar os fatos ruins, eles fogem das tragédias, não as enfrentam.

Mas ainda bem que fui atendida em tempo e a cirurgia indicada, ao invés do tratamento clínico, com remédios. Aí é que vem toda a história de luto que sou obrigada a contar. A primeira sensação foi de adormecimento emocional. É como se eu ainda estivesse anestesiada. Não no corpo, mas na minha alminha de cão. Eu simplesmente não acreditava que estava ali, quase morta.

E essa falta de conexão com o mundo real me deixou assim... passada! Uma coisa irreal, quase surreal. Cheguei a me imaginar no cemitério dos cachorros em Paris, meu corpo sendo velado e meus amigos uivando para mim. Uma cena muito triste, muito pesada. Acho que ali, no momento do corpo presente é que a casa caiu. Vou pedir para o papai sempre levar as crianças em enterros e outros cenários adversos. As pessoas não podem fugir da realidade. É um erro.

E seu eu estivesse mesmo morta? Aquela agonia, igualzinho eu sinto quando desejo sair para passear, onde não acho lugar e nem jeito de ficar. Aquela dificuldade para dormir, um sono com sonhos ruins - os cães também sonham, apesar do nosso sonho ser polifásico – e um dia entrecortado de suspiros, dificuldades de concentrar, de vontade que a pessoa volte da morte.

Humanos ficam olhando em volta para ver sem acham o ente querido na multidão, e ele não retorna. Cães farejam, ouvem, e olham também. Mas a nossa sensação é mais completa, mais surda, mais densa. Afinal somos mais sensíveis! Ai vem aquela raiva danada, aquela revolta. Vocês ficam acusando os médicos, no caso de doença, ou até os parentes que não se aproximaram mais, que não estavam por perto. Consideram que algo “faltou”. Parece que não percebem que a morte é algo inexorável. Auuuuuuuuuuu!

E a culpa? Cães não sentem culpa. Animais sentem tristeza e alívio emocional quando alguém se vai. Perfeitamente normal. Mas vocês acham que ficou restando algo a dizer, uma palavra, um último gesto. Nós ficamos até bem, e imagina que tem gente que se martiriza porque fica aliviado, como se tomassem um banho bem longo e lavado todos os pelos emaranhados, a sujeira das emoções que se acumulam com o tempo. Não tem problema, o passamento é fato.

Umas duas semanas depois aconteceu uma coisa estranha. Eu pensei que já estava boa e foi só uma amiguinha da minha irmã humana falar sobre doença e eu cair no maior choro! Um ganido convulso. Algo que não consegui segurar. Aí eu fiquei muito tristinha, mesmo. Demorou um par de dias, mas passou. Existe uma diferença imensurável entre tristeza e depressão.

Depressão é coisa de gente, não de cão. Nós superamos mais facilmente as perdas. Retornamos mais rapidamente as nossas atividades. E foi por isso que eu fiquei tão alegre quando papai me levou para passear. Confesso que estava fraca fisicamente, mas fui. Confesso que a lembrança de minha quase morte também rondava meus pensamentos caninos, mas fui. O segredo é prosseguir.

Eu não trouxe para minha vida cotidiana o luto crônico, não fiz um “memorial” de mim mesma e nem fiquei lembrando isso o tempo todo. Somente resolvi escrever. Porque escrevendo eu enfrento. Eu encaro. E com isso eu supero.

Não vou negar que de vez em quando fico abalada, é como – alguns humanos fazem isso – se eu devesse me lembrar dos entes queridos e resgatar na memória esses animais que já se foram. Eu sugiro - nem digo que aconselho, pois cachorro nem sabe fazer isso- que vocês, se passarem pelo que já passei, façam assim. Enfrentem o problema. Convivam com ele. E ultrapassem-no.

É por essas e outras que não morri e nem vou morrer, pois minhas lembranças de vida canina ecoarão para sempre nos ouvidos daqueles que amei. Como um longo latido, como um rosnar cheio de gracinhas, como eu, um cão em processo de eternização. Vivendo, apenas.

Úrsula Maff

6 comentários:

  1. ah...úrsula...

    que texto sábio!!!!!

    fiquei emocionada.

    obrigada por dividir sua experiência com seus leitores, é um gesto muito bonito e corajoso,

    preciso dizer também que sua sabedoria é invejável.

    um carinho especial para você, querida. :)

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  2. Olá Betina,

    Os cãos, como já disse o filósofo, sabem mas não sabem.

    Instintivamente colhemos emoções e eu - que dei de escrever - as coloco no papel.

    Quando um tio-avô do meu pai faleceu, o seu perdigueiro ficou no túmulo durante dias e dias. O vovô Enéas tinha que levar comida e água para ele.

    Esse cão não elaborou bem as perdas. Demorou. Acontece.

    Auf, auf, auf,

    Úrsula Maff

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  3. Úrsula, você tem me levado a refletir muito... Sabedoria e sensibilidade nos seus textos.
    Go ahead!
    Marcia Reges

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  4. Pois é Úrsula e eu levo a sério até
    demais, quando a Any fica assim com
    algo, até a sua respiração eu controlo,
    fico atenta, sofro demais.
    Fico ligada nela 24 horas por dia, até
    ter uma solução, o carinho acima de tudo,
    e por amor a vcs. cães, apesar de
    mais frágil que vcs. sou levada a tempos de euforias
    e alegrias, e a tempos de tristezas e preocupações.
    Mas com amor, muita atenção, e uma boa veterinária,
    quase sempre dá tudo certo.
    E acima disso tudo Deus!
    Saúde menina, e fica 100%, todos precisam de vc.
    Afagos,
    Lu

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  5. Márcia Reges,

    Obrigada pela sua tenta leitura.

    A sensibilidade canina, ainda mais de fêmea, é muito exarcebada.

    I'm trying to do my best!

    Thanks sweet lady,

    Rauf, rauf, rauf, barking in english...

    Úrsula Maff

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  6. Olá Lú,

    A preocupação de um humano com um cão demostra a qualidade da alma do mesmo.

    E a sua deve ser bem fofa e peluda! Fico feliz com isso.

    Mas infelizmente o destino nos prega peças e nós, cães, duramos menos do que vocês, humanos.

    Mas a saudade fica e nossas brincadeiras e atividades, também. Registre.

    Auf, auf, auf,

    Úrsula Maff

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