sábado, 24 de julho de 2010

Será que eu preciso estudar para concurso?

Passeando no Lago das Rosas com o papai não tive como evitar em ouvir uma conversa dele com um velho amigo:

- E aí, amigão? Como vai? Está sumido...
- Estou estudando para concurso.
- Qual?
- São vários. O que eu passar está bom.
- E o que você está fazendo? E o trabalho?
- Não estou trabalhando.
- E o futebolzinho?
- Parei.
- E a esposa? Os filhos?
- Ela está agüentando bem o meu sacrifício. As crianças eu pouco vejo.
- Como assim?
- Eles têm aula de manhã, e eu acordo depois deles porque estudo até mais tarde. Não dá para almoçar em casa, e de tarde eles tem várias atividades...
- Nossa! Tá difícil, einh? Você está feliz?
- Nem um pouco. Mas quando eu passar vai ficar bom, vou ganhar bem, ter férias remuneradas e 13 salário. Vida tranquila. Segurança.

Papai despediu-se em silêncio e até ficou matutando como ele conseguira achar o antigo companheiro essa hora da manhã de domingo, no parque. Ele não resistiu e perguntou, para finalizar:

- Mas o que você está fazendo aqui, às sete da manhã?
- Ontem eu estava tão cansado de estudar que fui tirar um cochilo depois do Jornal Nacional e dormi até agora. Como fazia uns dois anos que eu não passeava nos fins-de-semana eu resolvi vir aqui. Depois que reformou ficou lindo, não?
- Acompanhei cada mudança, está maravilhoso.
- Tiau, amigo.
- Até.

Nem sequer olhei para o meu dono porque sei exatamente o que ele estava pensando. Assim como nós cães, ele vive o presente. Como poderia admitir uma pessoa que passa dois anos sem fazer absolutamente nada de produtivo para ele e para a sociedade? E ainda mais sendo amigo dele? Coitado! Tão parado que não vê o tempo passar. Depois não consegue emprego, a mulher o larga, as crianças crescem e os pequenos prazeres, a saúde do corpo se esvai.

O que será estudar para concurso? Concurso do quê? Cachorros têm atividades bem definidas, profissões. Por exemplo, um Shetland é um pastor desde os mais imemoriais tempos. Subindo e descendo as highlands escocesas dos ancestrais do meu dono. Atende a um assovio, é fiel, inteligente e conhece como ninguém o seu ofício, cercar ovelhas. Acho que esse sujeito quer é um emprego. Muito diferente do que uma profissão, uma carreira, uma vocação...

Como ele poderá ostentar a felicidade de um Malamute que traciona um trenó por quilômetros e quilômetros na neve e alimenta-se bem? O malamutes e os huskies fazem o que gostam, por isso são tão alegres. Humanos têm dificuldades em fazerem o que gostam.

Outra coisa é o equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal. Dobermans são cães de guarda por excelência e extremamente afetuosos em família, junto aos seus. Este animal vive bem com uma porção agressiva e mostra-se muito fiel com os donos e a prole, e a sua fêmea. No caso do colega do papai, ele está totalmente desequilibrado! Deixando de lado sua esposa e filhotes!

Acho que nem irei comentar a sensação de realização e de reconhecimento. Nesse quesito a nota do sujeito é zero. O que ele andou fazendo estes dois últimos anos? Será que até o saber adquirido é aplicável? Ou ele somente precisa saber as coisas para responder as questões? E depois esquece? Deixa prá lá? Um pequinês era cão de companhia dos grandes reis e rainhas da China, na Cidade Proibida. Sua função era regiamente compensada. Bichos satisfeitos e imponentes. Zelosos de seus donos, os pequineses ostentam olhos vívidos de prazer.

Sobre uma das molas que movem o mundo das pessoas, que é o dinheiro, eu fico até pasma! Pois na minha experiência cachorros com muita grana são estressados, vivem chateados e a vida familiar despedaçada! Nem vou dar exemplo canino nenhum. O próprio amigo do papai é um cão decadente. Fraco, careca, barrigudo. Só de dar uma corridinha conosco ficou ofegante. Tadinho. Perdendo o seu bem mais precioso, que é a saúde... Acho que a maioria das pessoas não sabe disso. Aposto que ele nem acasala bem...

Por essas e outras é que cheguei a conclusão de que um cão não deve estudar para um concurso. A não ser que seja uma sequência e conseqüência de sua vida. Se por exemplo um perdigueiro português sempre serviu para caça de subsistência, mas pode ser especializado em caça noturna, farejamento, busca e quaisquer outras fases de caça. Algo como pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doc. O concurso se assemelha a algo em que muito são chamados (inscrições e fases) e poucos os escolhidos (entrevistas e números de vagas).

Obviamente que estas vagas são necessárias e devem ser preenchidas. Mas e o contingente excedente? Não teriam eles a condição de exercer uma profissão? Ou os humanos agora são frouxos, servos do poder público e de suas benesses incoerentes?

Nem se preocupem se o rapaz vai ler esse texto. Ele não tem tempo. Está estudando para concurso. E eu, sinceramente, torço muito para que ele seja aprovado e possa catar os cacos da vida despedaçada que deixou pra trás.

Úrsula Maff

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